FILOSOFIA DO COTIDIANO
FILOSOFIA DO COTIDIANO
COMO PEIXES ORNAMENTAIS
NUM AQUÁRIO DENTRO DO OCEANO
Disponivel em:
Para Darcy Ribeiro
Edward W. Said
e Pier Paolo Pasolini
Carne é pensamento.
A forma aprisiona e submete o conteúdo.
Pensamento, porém, não é lagoa, é oceano.
E o oceano é inapreensível. Profundidade e extensão, o oceano não comporta comportas.
Confundir o oceano com a sua superfície é o mesmo que confundir a arte com a história da arte ou o contemporâneo com o clichê do contemporâneo.
A forma aprisiona e submete o conteúdo.
Na era da homogeneização, das ordens em série, da padronização mental e das fantasias programadas, da utopia totalitária de monitoramento permanente, em que escolher não é se libertar mas subjugar-se a uma outra norma, e das divagações em torno do conhecido, quando a filosofia, a ciência e a arte estabelecem uma conivência com o “status quo”, envolvidas pela lógica do mercado, o que se pretende apagar corre o risco de ressurgir.
Como um palimpsesto.
Como as coisas mais frágeis e insubstanciais resistem e sobrevivem onde as pedras se desintegram.
Em tempos de uma nova Contra-Reforma e da imposição inquisitorial de um pensamento único, onde as imagens cégam igual chumbo derretido, novos hereges se instauram.
Como a multiplicidade das galáxias de Giordano Bruno.
Como Exus, senhores das encruzilhadas, de cujos atributos faz parte o poder da mudança e da transformação.
Como linguagem oculta sob as cinzas.
Um novo Novo Mundo, heterogêneo e polissêmico, em que a diversidade não é apenas uma questão de “indumentária”, “cenários” ou “máscaras”, mas a expressão da humanidade, tão variada em sua essência como em sua expressão.
Um mundo novo, “herético” e “caótico”, que não se configura de acordo com a harmonia hegemônica, mas enfrenta a arquitetura das catedrais imperiais em busca de uma (nova) linguagem que possa expressá-lo, uma linguagem concreta que lhe dê vida e consistência, peso e medida, mais rica que as abstrações experimentais esgotadas, cuja estética persegue a desumanização e a progressiva distância do real, uma linguagem que subverta as hierarquias e exprima a vitalidade de uma cultura emergente contra a indiferença e o solipsismo da poética dominante: com voluptuosidade de conhecimento mais que voracidade de conhecimento.
Esse mundo novo policêntrico, multicultural e pluriétnico insuspeito e indefinido, de limites ainda não determinados, do qual apenas se vislumbra alguns sinais, mas de que participamos como protagonistas de sua geração, é o território da nova arte.
Pois a nova arte quer fazer arte a partir do que ela não sabe. O que ela sabe já não a interessa mais.
Sua estética se situa no plano (mais amplo) da discussão da linguagem (o que acaba por ser uma discussão política).
Mais que a independência estética ela se interessa pela estética da independência; à estética estática ela quer opor uma estética dinâmica.
A velha arte contemporânea, apesar de seu epíteto e cognome, é uma arte do século passado, uma arte do século XX, uma arte que se compraz em sua própria frivolidade: uma arte que vem muito mais de Adam Smith e Thomas Malthus que de Marcel Duchamp.
Acontece que “sacudir” o espectador hoje é muito mais difícil que no século passado, a realidade hoje ultrapassa a ficção, ela questiona os limites do verossímil e do verdadeiro, a grande ficção atual é feita muito mais pelos cientistas que pelos artistas.
Os artistas ficaram medrosos, paralisados e submetidos.
Na pífia pretensão de “perturbar”, “incomodar” e “agredir” conseguiram apenas ficar mais chatos e repetitivos, presos a fórmulas gastas e esgotadas mesmo quando propõem-se a usar “conceitos” científico-tecnológicos , confinados a um pensamento hegemônico nas poéticas e nas formas do fazer artístico, onde o novo, em vez de bem-vindo é visto como uma ameaça.
O velho acha que o mundo, a vida e as coisas se deterioram com ele, mas “a fila anda” e o novo sempre vem.
Mesmo quando infectado pelo velho, o novo saberá sempre desenvolver seus próprios anticorpos.
Os velhos dirigentes intelectuais da sociedade sentem o chão desaparecer sob seus pés e suas pregações como coisas estranhas à realidade, e porque a forma particular de civilização, cultura e moralidade que eles representam se decompõe, sentenciam a morte de toda civilização, cultura e moralidade. A arte que eles dizem ter morrido (ou estar morrendo) é a arte deles e não a arte de todos, a arte que está em crise (e decomposição) é a arte deles e não a arte de toda sociedade.
Seus projetos sempre foram impostos de cima para baixo e de fora para dentro, numa autoritária modernização conservadora, excludente e imobilista.
Seu próprio conceito de “era tecnológica” como definidor do mundo atual mostra-se tendencioso e manipulador.
O uso tecnocrata de tal conceito significa a negação (ou o desconhecimento) do fato de que toda época possui a tecnologia que lhe é própria, conseqüência de um processo contínuo de transformações. (Eça de Queiroz em “A Cidade e as Serras” já fazia a crítica a mais uma hoje ultrapassada “era tecnológica”. Isso para não falarmos do tear e da fundição de metais na Barbárie, por ex.).
Cada momento histórico define-se como uma “era tecnológica” específica, o deslumbramento pela atual sendo antes de tudo, ideológico, na medida em que busca glorificar a dominação dos detentores das chamadas” tecnologias de ponta”.
A tecnologia, em si, é potencialmente libertadora.
No entanto, ela só pode tornar-se um instrumento de libertação se for compreendida como atividade do ser humano pensante, em sua atitude de indagação e adequação em face à realidade (natural e social), em sua capacidade de construir idéias, instrumentos e conhecimento, e não como um “milagre” do copyright, como “dádiva divina” de uma marca, ou como “revelação” de uma patente.
Integrante do processo de desenvolvimento histórico universal da razão, a tecnologia é pura e simplesmente mediação, é luva e não mão.
O contemporâneo foi encampado pelos pensadores conservadores neoliberais. Os “teólogos” da velha arte contemporânea querem monopolizar o conceito de contemporâneo do mesmo modo que os ideólogos norte-americanos querem monopolizar o conceito de democracia.
Mas afinal, o que é o contemporâneo?
Qual a importância do “contemporâneo” para o processo cultural contemporâneo?
A história da produção cultural no mundo (no Novo como no Velho) sempre se debateu com o conceito de colonialismo cultural, ora pendendo para processos internacionalistas, ora para estratégias nacionalistas. É neste entrechoque que a questão do contemporâneo teve suas origens.
Para além da atitude oportunista de angariar certas simpatias e obter certas promoções, a obra de arte independe de atestados de pertinência contemporânea. Ao contrário de todos os interesses de “lobby” embutidos no marketing da arte adjetiva, a arte independe de rótulo, marca, patente ou etiqueta: a arte substantiva é “genérica”. Ela simplesmente atua em seu próprio tempo (e espaço).
O contemporâneo é o resultado da convivência “palimpsestica” de várias linguagens e tempos históricos em uma mesma época, onde as novas questões culturais colocam em xeque as velhas hegemonias. (O novo, às vezes, veste as roupas do velho; ao velho, no entanto, resta apenas pintar os cabelos…).
Só se pode falar em linguagem contemporânea no plural: linguagem = linguagens.
O contemporâneo como fetiche (e rotulação) constitui-se apenas em representante (e representação) de uma entre suas muitas realidades e na ignorância (voluntária) de todas as outras.
O contemporâneo, no entanto, pressupõe a aceitação (inevitável) de todas as suas realidades, ou seja, a ampliação da visão que temos de nós mesmos.
O contemporâneo é policéfalo, é um “monstro” de várias cabeças, o sinal de nascença da contemporaneidade é o fato dela ser incontroladamente multitudinária.
Ao contemporâneo formatado pela mídia (pop) e pela academia (erudito) a nova arte contrapõe a visão de sua candura bárbara.
A nova arte quer vislumbrar as contemporaneidades várias que o contemporâneo pode conter, ela não se interessa apenas pelo espectro “visível” do contemporâneo, a ela interessa também o aquém do infravermelho e o além do ultravioleta, pois compreende que a manifestação mais legítima do contemporâneo artístico se dá quando esse contemporâneo é inconsciente de si mesmo, ou seja, quando ele é um entendimento natural e conseqüente de seu tempo (e espaço) e não uma “forçação de barra” teórica ou um “estilo” (fashion).
A estética da velha arte contemporânea encontra-se impregnada de uma visão “arcádica” e “utópica” do contemporâneo.
Do mesmo modo que os árcades ibero-americanos do século XVIII viviam numa “arcádia” idealizada e imaginária, os epígonos pós-modernos do século XXI vivem num “contemporâneo” igualmente idealizado e imaginário.
Esta nova arcádia, com seus clichês de abordagem e pensamento, seu “folclore”, sua “fauna” e sua “flora”, constitui-se num contemporâneo “regionalista”, cujo “cosmopolitismo” apresenta-se apenas como revolta da geografia contra a história, do “estilo” contra o pensamento livre, um “cosmopolitismo” impositivo que quer fazer passar o individual pelo coletivo e o regional pelo universal, do mesmo modo que deseja “provar” que o órgão é mais importante que o corpo.
As delimitações geográficas que consideram o pólo hegemônico como centro de um processo global de desenvolvimento histórico e artístico cai sempre na questão regionalista. Falar de contemporâneo é sintoma de uma crise de relacionamento ocidente/oriente e norte/sul.
Cada um de nós carrega a própria geografia e linguagem dentro de si, e só a real identidade pode ser uma ponte para o universal. (Se “as idéias não têm pátria”, elas têm, no entanto, copyright, registro e patente. O pensamento “puro”, a filosofia “pura” e a arte “pura”, do mesmo modo que a ciência “pura”, são tão ingênuas ou hipócritas quanto o amor “puro”: tudo é contaminado pelo seu tempo, seus valores e interesses).
A globalização eufórica dos anos 90 do século passado desaguou no século XXI em protecionismo tanto em relação ao comércio internacional quanto à troca de conhecimento e relacionamento inter-cultural , desconfiança, guerra, censura e tortura institucionalizada, com as economias desenvolvidas sendo pressionadas a também experimentarem a abertura de mercados “sugerida” à periferia.
Hoje, a arte é muito menos uma questão do “estranhamento” e do “invulgar” (transgressivo/conceitual), das “raízes” (cosmopolitas) e dos sistemas referenciais de “origem” e “identidade” (contemporânea) e muito mais uma questão do diálogo, fenômeno de simultaneidade, sincronismo e tensão que requer (da arte) uma visão panorâmica, generosa e maior.
Se há artistas que reproduzem idéias, pois necessitam libertar-se de um complexo de inferioridade duplo em relação ao moderno e em relação ao tradicional , há artistas que produzem idéias, pois desejam emancipar-se da credulidade cética e niilista pós-moderna e dos sofrimentos importados, e por isso não fazem uma arte de discípulos, mas fazem arte para compreender o mundo, isto é, a si mesmos e aos outros, despidos de armaduras teóricas e vestidos apenas de sua indisciplina intelectual; se há artistas que fazem uma arte que representa a mecânica de uma classe, há artistas que fazem arte para tentar entender a dinâmica de uma sociedade dividida em classes; e se há artistas que (ainda) fazem uma arte (apenas) a partir da própria arte, alimentando-se da própria saliva, há artistas que fazem arte a partir da vida e do real, ou seja, os que como as baratas e os ratos se alimentam tanto do lixo quanto do luxo, tanto dos restos apodrecidos quanto das mais finas iguarias, com uma fome democrática que tudo deglute por imperiosa necessidade de sobrevivência.
Nossas contemporaneidades são mais fluidas do que imaginam os cultores do contemporâneo “puro”.
O contemporâneo é múltiplo, dinâmico e altamente sujeito à “crioulização”. Tudo é germe, tudo é potência, o grande e o pequeno, o canônico e o anônimo,o erudito e o popular, o antigo e o moderno, o reconhecido e o esquecido, o consagrado e o estigmatizado, o assimilado e o segregado,o nacional e o importado.
O contemporâneo está presente em toda manifestação popular criativa de uma forma espontânea, distante de qualquer conceito intelectual “a priori”. [“Pelo telefone”, de Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, o primeiro samba gravado, em 1917, era a partir do próprio título profundamente contemporâneo, trazendo em si todos os elementos de modernidade o tema urbano e social, a irreverência, o humor, a dialética da autoridade,a referência à tecnologia, a mestiçagem e a antropofagia cultural (aí incluída a própria questão da autoralidade) , enquanto a “alta cultura” estava àquela altura a assoprar as cinzas do rescaldo de uma “Hélade” afrancesada em busca de alguma brasa dormida, só vindo a empregar esses mesmos elementos cinco anos depois, em 1922, com a Semana de Arte Moderna, seguindo as palavras de ordem de um Futurismo igualmente afrancesado.]
Ao contrário do conceito arrivista de um contemporâneo desterritorializado e apátrida (como o capital), o contemporâneo é sempre “nacional”, com seu conjunto de trejeitos, cacoetes e idiossincrasias. Toda linguagem mesmo a contragosto, ou principalmente neste caso traduz o espaço em que é produzida. Pois, toda cultura local tem em si mesma, “naturalmente”, um potencial revolucionário. Pelo simples fato de ser “local”. Identidades não podem ser desterritorializadas por estarem ancoradas no ar. As línguas neolatinas já foram latim um dia: latim bárbaro, latim “mal falado”…
O que existe, em qualquer situação geográfica, é que há um contemporâneo ingênuo, passivo, de cartilha, que ama os berloques e espelhinhos trazidos pelos “civilizados”: um contemporâneo “paisagem”; e um contemporâneo que vivencia o seu próprio tempo como sujeito, fazendo sua própria leitura dos padrões pós-coloniais impostos.
Ou seja, o que existe, ao fim das contas, é o contemporâneo e o mito do contemporâneo.
Deste modo, que significado deve ser atribuído à “arte universal”, esse conceito constantemente evocado?
Será a “arte universal” uma limitação definidora, ou, ao contrário, o ponto de convergência de muitas referências, um centro de perspectivas divergentes, de um problema a resolver?
Até agora a “arte universal” tem sido mais uma postulação que uma definição, o cânone ocidental visto sempre como a única “poética” de todos os tempos e de todos os povos, aos outros tipos de arte “regionais”, “periféricas” ou “gentílicas” restando apenas ter uma gratidão desprovida de crítica. (“No século XX, uma só cultura reinará sobre a totalidade do globo” Adolf Loos in “Culture”).
À nova arte interessa a gratidão contra.
À nova arte interessa os fluxos de informação em mão dupla.
Nos velhos caminhos da modernidade os fluxos de informação têm se feito em mão única, do Ocidente para o Oriente e do Norte para o Sul.
À nova arte interessa igualmente os fluxos em sentido contrário, ela quer “ouvir” o Oriente e o Sul falando de si mesmos e representando a si mesmos (e não mais tendo suas “identidades” estabelecidas e definidas por outros).
A nova arte não faz orações voltada para o Norte.
Ela não faz orações. Ela olha e tenta compreender.
Ela olha para o Norte, ela olha para o Sul, ela olha para o Leste, ela olha para o Oeste.
Ela tem poucas respostas mas faz muitas perguntas.
Ela quer transformar pegadas em caminhos.
A peste monoteísta gerou guerras, cruzadas, inquisições, intolerâncias, perseguições, conversões a ferro e a fogo, catequeses, fundamentalismos, hereges e povos eleitos.
Quem não consegue aceitar o Deus do outro não consegue aceitar o outro.
O monoteísmo é o pai da monocultura e do pensamento único.
Ele é incapaz de compreender o múltiplo e o diverso, isto é, o humano. Sua concepção monodivina é incapaz de compreender o plurihumano.
O monoteísmo é uma religião da uniformidade do deserto.
O politeísmo, ao contrário,é a religião da diversidade da floresta, diversidade que é a grande propulsora do complexo mecanismo da vida.
Um só Deus para todos os povos?
Uma só cultura para toda a humanidade?
Uma só arte para as infinitas sensibilidades?
A dúvida é a mãe da reflexão, isto é, da hesitação.
A certeza é a mãe da fé, da autoridade e da impiedade.
A certeza mata!
A velha arte contemporânea ainda se debate entre os “puros” e os “degenerados”.
Os “puros” são dotados de extrema sofisticação intelectual / existencial, enquanto os “outros” não passam de bárbaros o que não é “contemporâneo” conseqüentemente é “impuro” (e “degenerado”).
Os “puros” se vêem como “inventores da tradição”, pertencer à sua “igreja” é uma maneira de tornar-se “contemporâneo”, os outros “cultos” sendo associados ao que é “sincrético”, distantes do ideal religioso que os “contemporâneos” representam.
O “teórico/sacerdote” e o “iniciado/artista” às vezes se confundem, questões que incluem um intrincado jogo de poder.
Os “teóricos/sacerdotes” estimulam essa visão de “pureza contemporânea” com o intuito de controlar o conhecimento do “culto”, o mito de “supremacia contemporânea” usado como um instrumento de dominação (e manipulação) político-ideológica que visa legitimar a hegemonia dos “puros”.
A arte contemporânea julga uma obra de arte segundo um padrão pré- estabelecido, rejeitando-a caso ela não corresponda ao seu modelo, ao seu indubitável e indispensável pressuposto.
Submissa a cânones-dogmas, na busca de um contemporâneo idealizado e utópico, ela se pretende “pertinente” a esse mesmo contemporâneo (idealizado e utópico).
A estética da transgressão (pós-moderna) deu aos filhos dos ricos a oportunidade de se sentirem “marginais” e aos filhos da classe média a de se sentirem “ricos”.
Aos pobres (como sempre) restou apenas fazer a figuração.
Maneira elegante de se resolver a quadratura do círculo…
A nova arte se quer impertinente a esse mundinho mono.
Ser pertinente é ser pertencente e ela se interessa principalmente pelos “não pertencentes”, pelos que “não vêm a propósito”, pelos “inoportunos”, pelos “inconvenientes”, pelos que não são coniventes.
Ao mundinho mono da arte que se diz contemporânea, a nova arte prefere o mundão estéreo do contemporâneo.
Pois ela sabe que a pior arte é a arte homogênea, a arte produzida e consumida por uma única classe social, arte estanque, que não circula, coagulada, necrosada.
E que a arte que verdadeiramente conta, aquela que irriga e oxigena é a arte híbrida e experimental: socialmente híbrida e ideologicamente experimental.
O fato dos acontecimentos, às vezes, parecerem “não ter sentido”, “desorganizados”, “confusos” e “caóticos”, onde uma coisa parece não ligar-se a outra (alimentado por uma visão ideológica fragmentária da realidade), não significa que esses acontecimentos não tenham uma “ordem” e uma “regularidade”, mas unicamente que nós é que por uma série de razões não conseguimos perceber a “ordem” e a “regularidade” desses acontecimentos.
Descrevemos nossos mundos de acordo com a maneira pela qual cultural e condicionadamente os percebemos.
Todavia, quando lançamos um olhar, não ingênuo, mas cândido (de uma candura bárbara) sobre esses mundos e os comparamos às descrições que outras pessoas fazem deles, somos quase sempre tomados de (salutar) surpresa: as coisas que sempre consideramos “normais” aparecerão sob nova luz, a “explicação evidente” não satisfaz mais e perguntas inesperadas passam a ser formuladas.
A percepção da mudança pressupõe uma mudança da percepção.
Numa época de muros e intolerância, a arte, novamente tem um papel importante a desempenhar.
Para o novo artista do século XXI não faz a menor diferença se uma obra é ou não montada em torno da questão do contemporâneo, a não ser como um episódio na história dos estilos.
Ele tem é curiosidade em saber a quem interessa a questão do contemporâneo, e o que é, não o contemporâneo, mas a “questão” do contemporâneo tomada em si mesma, em sua postura insinuante, o “pathos” que lhe dá substrato.
Não é com a idéia de contemporaneidade que ele organiza seus passos através do contemporâneo, para ele a “contemporaneidade” é apenas uma idéia, uma idéia entre tantas outras no leque das coisas que pretendem se impor.
O contemporâneo, na verdade, passa ao largo dessa idéia (de “contemporaneidade”), de modo que para o novo artista os que falam de “contemporâneo” é como se falassem uma língua antiga e estranha, já que ele nunca foi outra coisa senão contemporâneo.
Contemporaneidade vai de par com cosmopolitismo e, da mesma forma que a “contemporaneidade” é apenas uma idéia, o “cosmopolitismo” é apenas um tema, um tema circunscrito, uma pequena fração no universo possível dos temas.
E ele, artista novo, está muito mais interessado no universalismo libertário do que no cosmopolitismo colonialista.
O universalismo é naturalmente contemporâneo enquanto o cosmopolitismo é um “valor” do século passado.
Embora se institua como devorador, a quem toda cultura deva se curvar como critério, padrão, intensidade e mérito, sob quem todas as obras devam ser avaliadas, campo magnético que “mata” o diferente no nascedouro, sorvedouro onde todos os caminhos devam desaguar, o contemporâneo-cosmopolita até tem um certo desejo do universal, um certo sentimento do universal, mas acaba sempre por ser apenas uma idéia e um tema regional, moldura que quer usurpar o lugar do quadro.
O contemporâneo-cosmopolita sobe às cabeças e se transforma num discurso geral, coercitivo e seletivo, num discurso de poder, fortemente marcado pelo “deve”, pela sensação de “verdade” e “adequação”, cuja estética acaba sempre redundando numa penalogia, num tratado ideológico de “autenticidade”, num imperativo de ação sob a forma de um caminho (que é um estilo).
O principal perigo de toda essa fala, no entanto, reside na manobra retórica e simplista de identificar o “contemporâneo-cosmopolita” como manifestação de forças “progressistas” e instalar o mito da hierarquia ideológica que não permite outras alternativas além daquela da “perfeição” da ortodoxia, colocando (todos) os artistas num dos dois pólos: ou no altar da glória ou no pó da heresia, estes últimos sendo praticamente excluídos do terreno da circulação de idéias (quando muito, em casos excepcionais, reduzidos a simples valores episódicos), como se o não professar a sua “fé” e “forma” fosse um ato de traição (quando muitas vezes é justamente o contrário), movimentos, processos e energias gestados no interior do próprio contemporâneo, marcados por algum tipo de novidade radical e que se encontrem ainda num estágio de difusa e difícil emergência sendo travados pelo seu filtro moralista que só aceita o que ele próprio dá de antemão, em sua vocação funcional para o imperialismo monopolista, gerando uma rarefação “metafísica” em que a troca de argumentos se torna impossível.
O conceito de “contemporâneo”, um conceito essencialmente de gabinete, se reduz, no fundo, à força de um adjetivo, e não se pode lutar por um adjetivo: um adjetivo não é um objetivo.
O novo artista não quer, contudo, aniquilar o “contemporâneo-cosmopolita” e sua arte “realista-capitalista”. Ao contrário. O que ele não tem é interesse nesse tipo de polêmica ultrapassada. Que se dê contemporâneo para os contemporaneístas, contemporâneo para quem precisa de contemporâneo, “polícia para quem precisa de polícia”.
Ele não vai, no entanto, admitir que a “voz contemporânea”, que se enquadra num modelo globalizante de discurso estético e proposta estratégica, seja a única voz.
O século XXI demanda a multiplicação, o desdobramento e a ampliação do campo dos possíveis, e a aventura contemporânea terá que se conformar em ser apenas um dos níveis dessa viagem através do desconhecido.
O novo artista é pós-contemporâneo.
O seu interesse se encontra na discussão da linguagem (o que pressupõe a discussão de linguagens, ou seja, a sua discussão político-ideológica), no livre curso das idéias (o que pressupõe a dissolução de fronteiras hierárquicas, de guetos estéticos e de quistos econômicos) e na liberdade de expressão (vista não apenas como um elitista problema do artista, mas como um problema de todos os homens).
Pensar o (pós) contemporâneo demanda discutir como as linguagens são produzidas, qual a sua circulação (ou impedimento), como se desenvolvem, se reproduzem e se transformam.
Pois é só na presença de toda produção cultural contemporânea que a palavra contemporâneo pode adquirir algum (eventual) significado.
Operar com a idéia genérica de contemporâneo é operar sob o risco da construção de pré-conceitos, da imposição de sentidos, do condicionamento de leituras e da instrumentalização arbitrária de julgamentos.
O contemporâneo não pode ser um valor que qualifique e determine as produções culturais genericamente, a partir de uma certa idéia de contemporâneo instituída pelo pós-modernismo e pelo anglo-cosmopolitismo.
O contemporâneo não é uma essência genérica, ele não existe em si, ele sozinho não explica nada, ele tem a realidade de uma máscara, que ao mesmo tempo expressa e esconde alguma coisa.
O problema do contemporâneo, hoje, é exclusivo das situações periféricas, em crise de comparecimento, de exclusão e de inserção em contextos mais amplos onde se desenrola a cena da dominação.
A afirmação do caráter contemporâneo (com tudo que isso implica no campo da cultura, da economia e da política) importa na definição da relação entre o próprio e o outro, relação que é sempre uma relação entre centro e periferia, dominantes e dominados.
Deste modo, a discussão sobre o contemporâneo acaba sempre por tematizar a articulação entre a produção da cultura e a sua circulação, isto é, a problemática da inserção do periférico em um circuito já dado, o que acaba forçosamente recaindo na crítica a esse mesmo circuito e na consideração de vias alternativas de acesso, bem como na produção de novas formas de pensar.
A dimensão da dominação no plano externo não impede e até facilita a discussão de sua dimensão interna, que é ainda o seu mesmo desdobramento.
A questão do contemporâneo (e o contemporâneo é mais uma ânsia que uma questão) tem sido um dispositivo eficaz à disposição dos segmentos nacionais privilegiados no sentido do monopólio da vida econômico-cultural, estendendo-se a si mesmos a condição de intérpretes (privilegiados) desse contemporâneo estratificado.
A análise da dimensão externa da dominação deve ser complementada pela análise de sua face consular interna.
Seria a renúncia a si o que caracterizaria a contemporaneidade?
Num mundo dominado por imagens, paradoxalmente nos faltam imagens que dêem conta da inteireza e variedade do humano.
E esta é hoje a contradição fundamental de quem trabalha com visualidade: não conseguir ver o real em sua totalidade.
Artistas que, por questões ideológicas e de classe são incapazes de vislumbrar uma parte essencial da realidade em que vivem, segregados em seu circuito panóptico que torna “invisível” o circundante “incômodo”.
Artistas que, orgulhosamente dizem não fazer arte pensando no público, mas constroem sua obra em função quase que exclusiva de seu “público” (composto por seus próprios pares: curadores, críticos, galeristas, colecionadores e outros artistas), artistas de dois pesos e duas medidas, que se contradizem em seus próprios termos, pois, ao mesmo tempo em que menosprezam um público, se submetem a outro, fazendo subservientemente uma arte específica para este público específico (mais acessível, na medida em que manipula o mesmo código).
Como rios que desaguam em si mesmos, trocam a dificuldade de um público mais amplo pela facilidade de um público segmentado e “especializado”, fugindo ao desafio da amplitude e se refugiando na comodidade e no conforto do restrito. O que faz com que, ao pretenderem fazer uma arte “difícil”, acabem por realizar, de fato, uma arte fácil, que dá ao (seu) “público” aquilo que o (seu) “público” espera (e exige) deles.
Em arte, todo progresso no sentido de uma nova amplitude e complexidade está ligado a um movimento análogo do público.
A separação artista-público significa apenas que se está atravessando uma fase histórica relativamente primitiva, uma fase ainda econômico-corporativa, em que o artista ao invés de ser um experimentador de concepções, antagônicas aos antigos modos de pensar, constitui-se apenas em expressão “poética” desses modos, em complementar e acessório a esses antigos modos, um artista que não conseguiu ainda despir-se de sua “burca” ideológica.
Mas o que é a arte afinal?
Técnica (ou tecnologia)? Conceito? Sistema? Método?
Bom (ou mau) comportamento? (In)Habilidade? Corte(sia)? Marketing? Boas (ou más) relações?
A arte é tudo isso e nada disso: a arte, em qualquer época, é um esporte brutal que deforma (e forma) as pessoas e onde se sangra em profusão (sangue verdadeiro ou cenográfico, pouco importa). A arte é sempre, em última instância, a vitória da poesia instintiva sobre a academia colonialista.
E seria, de fato, a renúncia a si apesar (ou por causa) de toda ênfase narcísico-individualista o que caracterizaria a contemporaneidade?
Em países periféricos a noção do contemporâneo não é nova, ela tem estado presente, nas mais diversas épocas, na obra e no pensamento de uma vasta gama de artistas, e a questão econômica, mesmo quando escamoteada, é sempre a primeira que surge.
A noção do contemporâneo é produzida basicamente dentro do circuito intelectual, o povo simplesmente “vive” o contemporâneo, as elites é que se preocupam, através da produção de variados discursos, com essa busca de “identidade” (contemporânea), que repousa sobre uma experiência conceitual, os próprios aparelhos ideológicos do Estado reproduzindo esses discursos em diferentes situações e instâncias.
Enquanto a experiência da elite é conceitual, a experiência popular é vivencial.
[O cenário contemporâneo da família partida, do Estado falho, da religião relativizada e da escola em inação, em que só resta ao indivíduo ele próprio, que tanto assusta, desconserta e deixa perplexa a classe média, na verdade não tem nada de novo, pelo contrário, é um cenário antigo, é o cenário onde sempre se moveram as classes subalternas e populares, a sua única “novidade” sendo o ele ter atingido agora essa mesma classe média, uma classe que tem (ou julga ter) voz e visibilidade e vê a si própria como medida de todas as coisas.
Nada de novo no front: as classes populares têm 500 anos de estratégias de sobrevivência nesse velho cenário e por isso são mais aptas a viver nele (Alô! Alô! Mr. Darwin!); para quem passou (e passa) pela escravidão, miséria, espoliação e exploração, este cenário contemporâneo é moleza.]
Ao artista novo interessa descobrir o que esses discursos (da elite) ocultam, o que recalcam e o que revelam.
Nós temos tido na trajetória da(s) arte(s) periférica(s) soluções mais ou menos adequadas a essa questão do contemporâneo, que é meio mitológica no 3º Mundo, onde ela é uma “necessidade”,mas uma necessidade baseada mais em condições político-econômico-ideológicas que estéticas (dos projetos intelectuais individuais aos projetos de Estado). O problema é essa necessidade se transformar na grande questão das culturas periféricas e se converter numa questão autoritária (mais uma).
No 3º Mundo as artes plásticas nunca tiveram um terreno sólido de autonomia (apesar das inevitáveis interpretações, transformações e contaminações), elas têm sido desde a época colonial, tradicionalmente um dos setores mais colonizados (e por isso elitizados) da cultura.
Não se pode pensar uma cultura dissociada das outras culturas: do mesmo modo que pensar a cultura brasileira dissociada das outras culturas é pensar pré-einsteinianamente, pensar a cultura européia (e por extensão a norte-americana) dissociada das outras culturas é pensar pré-gutenberguianamente [que é exatamente como os europeus (e norte-americanos) a pensam].
Os intelectuais e artistas brasileiros, de um modo geral, costumam pensar “cosmopolitamente” (embora quase sempre um “cosmopolitismo” da hora ¾ anteontem o de Lisboa, ontem o de Paris e hoje o de Nova York ¾, alguns, poucos, arriscam-se a pensar universalmente), os europeus e norte-americanos, no entanto, só conseguem pensar regionalmente, e ao fim das contas, acabam sempre por enterrar a cabeça dentro da própria cabeça. [A Europa, hoje, assusta-se com a própria Europa: no ano em que comemorará os 50 anos de existência (2007), a União Européia passará a contar com mais dois países membros, e à confusão lingüística dos 20 idiomas oficiais se somarão o búlgaro e o romeno, e, de quebra, um novo alfabeto, o sirílico, usado na Bulgária. Os Estados Unidos, num outro sentido, assustam-se com a expansão do espanhol, que em certas regiões de seu território já é, quase, a língua “oficial”].
Cultura é produção e superposição de saber, por isso, em todo mundo, só os chineses produzem a melhor cultura chinesa, os franceses, a melhor cultura francesa, os afegãos, a melhor cultura afegã, os americanos, a melhor cultura (norte) americana, como os brasileiros, a melhor cultura brasileira. Um povo, qualquer povo, ao não assumir essa tarefa priva a humanidade desse depoimento particular, fundamental e intransferível de juntar-se aos outros povos no reencontro, particular mas universal do humano.
A contemporaneidade não é uma coisa definida e estabelecida por antecipação (como parte de projetos imperiais), mas uma coisa que se constrói, que vai sendo formada em seu próprio processo, um processo que é uma luta, especialmente nos países de origem colonial, onde essa questão está e esteve sempre presente consciente ou inconscientemente nos processos culturais e artísticos e onde a cultura nova entra em conflito com a cultura existente, ora produzindo o novo, ora produzindo uma “nova” colonização (o pós-colonialismo tem sido, em muitos casos, apenas um colonialismo pós-moderno), idéias que, por um lado são importação e interferência e por outro assimilação e modernização em face às idéias retrógradas (coloniais) que constituíam a base da cultura e da arte até então; processo complexo que num mesmo movimento pode criar as possibilidades para um desenvolvimento artístico e cultural mais original, mais criativo e menos submetido e simultaneamente condicionar e atar esse mesmo desenvolvimento a uma outra submissão (mais sutil). [No passado, a catequese religiosa em sua opção preferencial pelos jovens, em face ao fracasso inicial com os índios adultos; no presente, a catequese consumista (e igualmente religiosa) em sua opção preferencial pelas crianças, com uma pedofilia comercial que infantiliza todas as idades. No passado como no presente, a conquista dos adultos através dos jovens e crianças, a mesma hipocrisia e fervor (religioso-econômico), a colonização e a pós (ou re) – colonização como elos de uma mesma corrente].
É nesse fio de navalha que se move a (nova) arte do século XXI.
Identidades são importantes não por si mesmas, mas pelo fato de que só uma cultura e uma arte que nasçam de experiências efetivas de vida (que se transformam em conceitos) e não de “conceitos” (ideológicos-abstratos) têm possibilidades reais de criatividade e autonomia, o que quer dizer personalidade, e só a personalidade (ou a falta de) pode definir uma cultura (ou uma pessoa).
Curiosidade e crítica são fundamentais para uma compreensão nova da (mesma) realidade: curiosidade de conhecimento em relação a todas as manifestações contemporâneas universais, acompanhada da imprescindível visão crítica em relação a elas, de modo a apropriar-se da riqueza e complexidade dessa experiência em sua totalidade, imune às visões (hegemônicas) simplificadas e simplificadoras, segmentadas e dirigidas.
A nova arte quer olhar a arte por cima do ombro, ela quer “escrever” a história da história, entender e analisar as suas lendas, mitos, fábulas e boatos, muitas vezes disfarçados de “fatos” objetivos, e não se importará se ao fim e ao cabo essa história da história resulte parcial como a própria história, pois sabe que o importante não é a imparcialidade (toda história é parcial), mas a possibilidade de uma outra versão [a multiplicidade de versões é o que realmente importa, só um leque o mais diversificado possível de versões nos possibilitará um tênue vislumbre da “verdade” (a verdade é apenas a soma das versões assimiladas)].
Somos perseguidos igualmente pelo passado e pelo futuro.
Por isso o novo artista não quer emparedar-se no contemporâneo, ele quer libertar-se dessa antiga questão e simplesmente respirar o ar do presente.
O novo artista é um traidor: em relação à “tradição”, à “família” e à “pátria”; à “tradição” pós-moderna, à “família” contemporânea e à “pátria” neoliberal.
Ele busca sua própria verdade lutando contra o que essa “tradição”, essa “família” e essa “pátria” tentam lhe impor, ele corta as “raízes”, ele é sempre alguém “a ser”, ele se contradiz todo o tempo, ele coloca as coisas em causa, inclusive (e principalmente) a si mesmo, ele vê com os próprios olhos (e não com olhos de aluguel) pois sabe que “o que não sabe por conta própria não sabe”, ele é um “explorador” intelectual, um “aventureiro” mais que um pesquisador, que interessa-se pela cultura dos outros na mesma proporção em que se desinteressa pelo rito acadêmico e pelo jogo das instituições; para ele, mais importante que discutir a produção da arte é discutir a circulação da arte.
Ele sabe que a realidade insiste em mostrar-se por inteiro (a despeito dos velhos teóricos do fragmentário) e que por isso, compreender, nem sempre quer dizer concordar, compreender pode significar discordar.
Mas sabe, principalmente, que as elites econômicas, políticas e artísticas são exata e complementarmente iguais entre si, uma vez que possuem a mesma “natureza”, feitas que são da mesma “matéria” social.
Embora cada uma se ache “muito diferente” das outras, essa “diferença” é apenas idiossincrática: cada uma é como é exatamente porque as outras são como são.
Embora cada uma veja as outras com indisfarçada desconfiança e um certo ar de superioridade complacente (ah! os políticos…; ah! os empresários…; ah! os artistas…), são todas filhas do mesmo pai e da mesma mãe (inclusive nos casos de bastardia) e seus “desentendimentos” constituem-se apenas em “brigas de família”.
Serão nossos artistas, apesar de seu discurso quase sempre autolaudatório, realmente melhores que nossos empresários e nossos políticos?
Cada qual não faz exatamente o que se espera dele, cumprindo o papel que lhe foi designado?
Cada qual não tem exatamente o seu quinhão demarcado neste latifúndio (onde a um discurso de apreço à moral, ao respeito e à ética, corresponde uma prática de egoísmo indiferente e cínico em que cada um cuida de si e de sua classe, of course , e onde golpes civis são convenientemente “disfarçados” em golpes militares)?
Na verdade o que se vê é uma una e única elite, como peixes ornamentais num aquário dentro do oceano, uma elite exótica, incapacitada para qualquer contato com o real, que apesar de toda sua autoproclamada “sofisticação intelectual” é analfabeta, incompetente para ler seu próprio tempo e espaço.
Uma elite exótica que isolada em seu aquariozinho acha que o oceano é que é exótico.
Uma elite velha que pretende nos vender o novo.
O próprio conceito de elite, aliás, é um conceito antigo, um conceito tribal que tem a ver com privilégios e hierarquia e não com diferença e diversidade que são as marcas do humano.
Nos séculos XIX e XX, um escritor, músico, pintor ou arquiteto latino-americano só poderia se “qualificar” como artista caso tivesse vivido pelo menos alguns anos no exterior.
As várias “metrópoles”, através de uma coação cultural colonialista, impuseram sua língua, sua religião e sua compreensão do mundo, o seu gosto e predileção como única salvação, só sendo considerado “bom” aquele que mais semelhante e parecido lhes fosse.
Os próprios conceitos de “nacional” e “internacional” foram conceitos construídos pelo colonizador, passando sempre pelo seu crivo ideológico.
Do mesmo modo que no passado o “nheengatu”, a “língua geral”, uma espécie de esperanto das tribos indígenas do Brasil, foi uma “língua nacional” criada e produzida pelo colonizador, o “cosmopolitismo” é hoje uma espécie de “nheengatu internacional” a pós-colonizar o imaginário periférico.
A transferência de modelos artísticos dos “países desenvolvidos” para os “países em desenvolvimento”, como a transferência de tecnologia, está sempre ameaçada, de forma análoga, por duas contingências: de um lado pela mentalidade “idealista” dos “países desenvolvidos” que impede que a realidade seja reconhecida de forma adequada, e de outro pela “fascinação” dos “países em desenvolvimento” que vai além dessa mesma realidade.
No “idealismo” dos primeiros, predomina a opinião de que é necessário implementar qualquer ação nos ”países em desenvolvimento”, pois assim alguma coisa haveria de se pôr em movimento por lá; e a “fascinação” dos segundos faz com que fiquem deveras perplexos quando começam a surgir as dificuldades por não poderem usufruir dos “benefícios” de tais projetos, por causa da inexistência da infra-estrutura imprescindível (o que acaba exigindo medidas de formação por demais orientadas e fixadas nesses projetos), um pouco como construir usinas de energia sem ter ainda o necessário e indispensável sistema de linhas de transmissão: a usina fica gerando energia para si mesma…
Há civilizações que adotam como ideal o equilíbrio entre opostos. Outras se dedicam a buscar a máxima identificação com os ritmos da natureza. A nossa tomou como meta a descoberta e a difusão universal da verdade.
Por isso é que ela é a civilização das cruzadas permanentes,do proselitismo incansável e dos santos, que a tudo recusam para viver um único ideal de pureza. E a crueldade é a principal decorrência da ambição dos puros, sejam eles os inquisidores, os virtuosos,os terroristas, os missionários, os sábios, os economistas ou os artistas.
O cristianismo foi usado como dominação colonial; o iluminismo foi usado como concentrador de saber, e conseqüentemente de poder; e a democracia está sendo usada como dominação capitalista.
Boa parte dos mitos sobre o Brasil foi fundada por estrangeiros: a “Carta” de Caminha gerou a noção da cordialidade indígena, a Missão Artística Francesa, em 1816, ensinou-nos a representar a natureza e o homem dos trópicos, Karl Friedrich von Martius, em 1843, sugeriu que a verdadeira escrita da história brasileira deveria ser a narrativa épica da miscigenação.
A “originalidade” brasileira, em mais de uma ocasião, foi estrangeira em sua origem.
Por isso, o destino do Brasil é popular.
Ao contrário do cristalizado erudito europeu e do amaneirado pop norte-americano que é apenas um erudito degradado , o melhor da cultura brasileira é popular (inclusive sua intrínseca antropofagia e sincretismo).
O que há de mais refinado em nossa cultura é popular. (E falo de requinte mesmo, de sofisticação, nada a ver com o “autêntico” colonialista ou o “nacional” colonizado.)
Um popular que flui “naturalmente” por vontade e empenho para o erudito.
O nosso erudito é popular. (E talvez só o popular possa nos dar o real erudito).
Noel Rosa, um estudante de medicina de classe média, compreendeu claramente isso e apostou todas as fichas de seu talento nessa visão (e nessa compreensão).
O movimento modernista de 1922 (precedido por algumas atitudes ainda hesitantes de Olavo Bilac e João do Rio), em suas várias vertentes à direita e à esquerda , procurou sinceramente essa mesma direção, tropeçando embora em seus preconceitos de classe e em sua dependência atávica (como elite) ao “erudito universal”, que sempre significou o erudito da potência cultural da vez (Portugal, França ou Estados Unidos), ou seja, o seu “universal” foi sempre e apenas o regional hegemônico.
A nova arte entende que a arte não pode ser uma conspiração de elite.
O que temos chamado de “arte”, tem sido, muitas vezes, apenas a conseqüência das formas específicas de relação entre as “cortes” (novas ou antigas) com a arte e os artistas.
A nova arte não quer apenas aprender a caminhar sobre as águas, ela deseja poder andar sobre os pântanos.
Ela quer produzir uma arte sem centro, sem uma cabeça de decisões, que incorpore Londres e Kuala Lumpur, Nova York e Doha,Milão e Luanda, Paris e Havana, Berlim e Santa Cruz de la Sierra, que recuse o “cosmopolitismo” enquadrado, acrítico e subserviente, mas pratique um universalismo ilimitado (inclusive dentro de seu próprio país, o que equivale à incorporação de todas as suas regiões).
A nova arte não se interessa em como a arte latino-americana repercute em Londres ou Nova York, mas sim em como ela repercute em sua própria região independente dos velhos discursos de sub-avaliação e de ultrapassados preconceitos , ela luta pela ruptura das possibilidades de manipulação internacional da informação e por uma arte que represente exatamente aquilo por que o centro hegemônico diz lutar: a democracia.
Ela é uma arte que é levada adiante por suas próprias contradições, das quais, aliás, se alimenta.
Ela deseja tão somente arejar o quarto de despejo da arte.
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